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terça-feira, 24 de abril de 2018

Auto-retrata-te

Um comentador televisivo ou radiofónico não está para o espectador ou ouvinte como um escritor (ficcionista) está para o seu leitor. As relações não são equiparáveis. É interessante, e por vezes deplorável, verificar isso.
Nos programas de comentário político portugueses, os comentadores que se esquecem de despir as suas emoções ao entrarem no estúdio acabam por ser os exemplos-vivo dessa normativa. No último Eixo do Mal, assistimos a  essa "cegueira", e muito mais: à fugaz conjectura de café, de grupo ou rede electrónica- cujo resultado foi menoscabado.
Vamos, num primeiro juízo, olhar para o auto-retrato feito pelo comentador Luís Pedro Nunes. Todos percebemos o perfil que traçou de si mesmo. Um ser-humano que se metamorfoseou num chibo do monte. Ele insistiu, insistiu até que a transformação ficou completa: transformou-se num animal repugnante, voluntariamente. Nem as tentativas de interpelação foram eficazes, os cornos e as patas acabaram mesmo por nascer. Como algumas coisas que, para nós, fazem tanto sentido, e para outros não. Mas neste caso, ele bem se pode esforçar que já lhe virámos as costas há muito. Quem qualifica como uma excelente peça jornalística ao que assistimos na Sic, denuncia o escárnio que sente por José Sócrates. Ele insere-se no grupo de pessoas que, seja qual for o desfecho do mega-processo Operação Marquês, só aceitará a condenação. A cura para todos os seus males, para poderem finalmente parar de fazer o sacrifício de terem orgasmos na televisão ao falarem do caso Marquês, será a sentença. Uma absolvição é impensável. Estão tão apaixonados pela telenovela, excitados, como cadelas em período do cio, doentes, cabras em fase de transumância, à procura do pasto, sempre comandados pelo ódio.
Em tudo vêem a culpabilidade. Seja pelo uso de códigos no diálogo, seja pelo comportamento ao longo do inquérito,  que para alguns, como li hoje no Público, por outra cabra do monte, "a voz e postura corporal dos arguidos são elementos fundamentais para a formação de uma convicção"; pelo argumento que face a uma bondade tão grandiosa do Santos Silva ao Sócrates, não haja motivos plausíveis para que Sócrates converse da maneira "opressiva" para o amigo. Como se tivesse que haver uma co-relação de tratamentos entre eles, para passar tudo a ser "normal". As coisas não funcionam assim, até porque é possível provar empiricamente que uma pessoa possa estar admoestada perante actos bondosos. E, alguém equilibrado forma uma convicção coesa  por causa de uma escuta que revela um tratamento entre Ricardo Salgado e José Sócrates por "Zé"?
Alguém razoável põe em causa a doutrina da justiça garantista? Alguém comedido pode ser indigente a essa condição que tanto nos protege: "mais vale um culpado cá fora que um inocente lá dentro"?  E o único argumento que encontram é o consequencialista: os interesses dos indivíduos são marginalizados, mas o colectivo, esse, é defendido. Mas até aí se enganam. Uma falha tão grave como esta num Estado de Direito nunca protege o cidadão. Em nenhum sentido. Só nos deve envergonhar.

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