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terça-feira, 17 de abril de 2018

Inquérito em directo

A última divulgação de excertos do inquérito a José Sócrates, apresentados pela Sic, abrindo assim de forma apelativa o telejornal, com essa promessa de sangue-fresco, consiste numa tentativa, fracassada a meu ver, de manchar e antecipar a culpabilidade de José Sócrates. Este processo, que é marcado pelas sucessivas violações do segredo de justiça, é agora marcado pela desobediência da Sic, partilhando a divulgação destas gravações. Conhecedora dessa desobediência, o cálculo (custo-benefício) é simples: vale a pena desobedecer, em nome das audiências. Em relação à violação do segredo de justiça, deixem-me dizer o seguinte: na minha opinião, não se trata apenas de uma violação concreta a um direito do arguido, também o é, pois essa lei existe face à existência dum arguido, mas também é uma violação grave a uma lei própria do Estado de Direito.
Uma opinião mais objectiva, propensa a uma análise humana e sensível, da argumentação dos procuradores, em certos momentos, leva-me a pensar na insensibilidade das pessoas que comandam o inquérito. Penso que seja impreterível bom senso neste confronto. Uma amizade íntima, de infância, logo, de longa data, tem de ser considerada. Perguntemos a nós mesmos: se fossemos possuidores de uma grande riqueza, não emprestaríamos certamente um apartamento a um amigo de infância nosso? Eu faria. E também aceitaria receber esse favor, sem problemas de consciência, evidentemente por não exercer nenhuma função administrativa pública, da mesma maneira que Sócrates usufruiu, após , e não durante, funções dessa natureza. É certo que Carlos Santos Silva parece ter um papel de "fantoche" devido à facilidade com que empresta dinheiro, ou como recebe indicações, uma "lagartixa", enfim, mas não há crime nisso. Um argumento que fundamenta isso, é a facilidade com que os procuradores também encaminham as respostas dele, em inquérito, e isso penso que também não seja correto. Tentam, muitas vezes, forçar respostas que sejam "úteis".
É desumano, um acto ignóbil, julgar a postura e comportamentos de Sócrates neste inquérito. Desconhecemos, na totalidade, várias informações sobre este inquérito. O tempo de duração, por exemplo, (não nos esqueçamos que a Sic, interessar-lhe-á, sempre, escolher as partes que aludem a uma perpassável polémica), que pode explicar o estado de sublevação: imaginem-se numa sala, por várias horas, sobre um inquérito exaustivo; a indiligência com que os procuradores perseguem um erro no discurso (o modo como um dos procuradores refuta Sócrates, dizendo que se fosse no caso dele, lembrar-se-ia do método de pagamento de umas férias em Veneza, hipoteticamente, em Veneza). Dentro dessa linha, proscrever o governo de Sócrates por responsabilidades políticas, na óptima de quem critica a sua governação, exigindo assim uma condenação por isso, é eticamente pernicioso. Basta ser racional para o afirmar.
Sobre a sua obra científica, só uma coisa está provada: a compra de exemplares, por parte de um amigo, (de infância, embora aqui, de infância ou não, seja indiferente) suficientes para uma reedição. Isto é unicamente o que se consegue provar, a meu ver. No entanto, isto não constitui crime. Poder-se-á dizer que é um defeito humano, a vaidade, mas, crime não o é. Muita gente, gostava que fosse, mas não é. Uma pergunta que faço é se essa vaidade demonstra peremptoriamente o seu falhanço académico. Não, não demonstra.
A figura de Sócrates levantará sempre desacordo de opiniões. Uns, como eu, acreditarão sempre na proeminência do seu carácter, força e índole de combate por uma democracia acrisolada. Outros nutrem um ódio extenso, permanente, que estará sempre protegido até uma condenação.

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